Novo Blog
Querida(o)s, estou com um novo blog no ar, lá no Pandorama, com mais um monte de gente que eu admiro muito falando de cultura, como a Alice Ruiz, o Antônio Cícero e a Patrícia Palumbo. Passem por lá e palpitem?
O Menino Perdido
(Pablo Neruda)
Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.
Quem fui? O que fui? O que fomos?
Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando folha por folha,
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele que não foste.
Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a construção do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.
Assim aconteceu comigo.
De silveste
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
era tu que crescias,
era tudo,
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e às vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.
Marcadores: Neruda, Versos roubados
Marcadores: Perpétuos
Dia 8 de março seria um dia como qualquer outro, não fosse pela rosa e os parabéns. Toda mulher sabe como é. Ao chegar ao trabalho e dar bom dia aos colegas, algum deles vai soltar: ”parabéns”.
Por alguns segundos, a gente tenta entender por que raios estamos recebendo parabéns se não é nosso aniversário (exceção, claro, à minoria que, de fato, faz aniversário neste dia).. Depois de ficar com cara de bestas, num estalo a gente se lembra da data, dá um sorriso amarelo e responde “obrigada”, pensando: “mas por que eu deveria receber parabéns por ser mulher?”.
Mais tarde, chega um funcionário distribuindo rosas. Novamente, sorriso amarelo e obrigada. É assim todos os anos. Quando não é no trabalho, é em alguma loja.. Quando não é numa loja, é no supermercado. Todos os anos, todo 8 de março: é sempre a maldita rosa.
Dizem que a rosa simboliza a “feminilidade”, a delicadeza. É a mesma metáfora que usam para coibir nossa sexualidade — da supervalorização da virgindidade é que saiu o verbo “deflorar” (como se o homem, ao romper o hímen de uma mulher, arrancasse a flor do solo, tomando-a para si e condenando-a – afinal, depois de arrancada da terra, a flor está fadada à morte). É da metáfora da flor, portanto, que vem a idéia de que mulheres sexualmente ativas são “putas”, inferiores, menos respeitáveis.
A delicadeza da flor também é sua fraqueza. Qualquer movimento mais brusco lhe arranca as pétalas. Dizem o mesmo de nós: que somos o “sexo frágil” e que, por isso, devemos ser protegidas. Mas protegidas do quê? De quem? A julgar pelo número de estupros, precisamos de proteção contra os homens. Ah, mas os homens que estupram são psicopatas, dizem. São loucos. Não é com estes homens que nós namoramos e casamos, não é a eles que confiamos a tarefa de nos proteger. Mas, bem, segundo pesquisa Ibope/Instituto Patricia Galvão, 51% dos brasileiros dizem conhecer alguma mulher que é agredida por seu parceiro. No resto do mundo, em 40 a 70 por cento dos assassinatos de mulheres, o autor é o próprio marido ou companheiro.Este tipo de crime também aparece com frequência na mídia. No entanto, são tratados como crimes “passionais” – o que dá a errônea impressão de que homens e mulheres os cometem com a mesma frequência, já que a paixão é algo que acomete ambos os sexos. Tratam os homens autores destes crimes como “românticos” exagerados, príncipes encantados que foram longe demais. No entanto, são as mulheres as neuróticas nos filmes e novelas. São elas que “amam demais”, não os homens.
Mas a rosa também tem espinhos, o que a torna ainda mais simbólica dos mitos que o patriarcado atribuiu às mulheres. Somos ardilosas, traiçoeiras, manipuladoras, castradoras. Nós é que fomos nos meter com a serpente e tiramos o pobre Adão do paraíso (como se Eva lhe tivesse enfiado a maçã goela abaixo, como se ele não a tivesse comido de livre e espontânea vontade). Várias culturas têm a lenda da vagina dentata. Em Hollywood, as mulheres usam a “sedução” para prejudicar os homens e conseguir o que querem. Nos intervalos do canal Sony, os machos são de “respeito” e as mulheres têm “mentes perigosas”. A mensagem subliminar é: “cuidado, meninos, as mulheres são o capeta disfarçado”. E, foi com medo do capeta que a sociedade, ao longo dos séculos, prendeu as mulheres dentro de casa.. Como se isso não fosse suficiente, limitaram seus movimentos com espartilhos, sapatos minúsculos (na China), saltos altos. Impediram-na que estudasse, que trabalhasse, que tivesse vida própria. Ela era uma propriedade do pai, depois do marido. Tinha sempre de estar sob a tutela de alguém, senão sua “mente perigosa” causaria coisas terríveis.
Mas dizem que a rosa serve para mostrar que, hoje, nos valorizam. Hoje, sim. Vivemos num mundo “pós-feminista” afinal. Todas essas discriminações acabaram! As mulheres votam e trabalham! Não há mais nada para conquistar! Será mesmo? Nos últimos anos, as diferenças salariais entre homens e mulheres (que seguem as mesmas profissões) têm crescido no Brasil, em vez de diminuir. Nos centros urbanos, onde a estrutura ocupacional é mais complexa, a disparidade tende a ser pior. Considerando que recebo menos para desempenhar o mesmo serviço, não parece irônico que o meu colega de trabalho me dê os parabéns por ser mulher?
Dizem que a rosa é um sinal de reconhecimento das nossas capacidades. Mas, no ranking de igualdade política do Fórum Econômico Mundial de 2008, o Brasil está em 100º lugar entre 130 países. As mulheres têm 11% dos cargos ministeriais e 9% dos assentos no Congresso — onde, das 513 cadeiras, apenas 46 são ocupadas por elas. Do total de prefeitos eleitos no ano passado, apenas 9,08% são mulheres. E nós somos 52% da população.
A rosa também simboliza beleza. Ah, o sexo belo. Mas é só passar em frente a uma banca de revistas para descobrir que é exatamente o contrário. Você nunca está bonita o suficiente, bobinha. Não pode ser feliz enquanto não emagrecer. Não pode envelhecer. Não pode ter celulite (embora até bebês tenham furinhos na bunda). Você só terá valor quando for igual a uma modelo de 18 anos (as modelos têm 17 ou 18 anos até quando a propaganda é de creme rejuvenescedor…). Mas mesmo ela não é perfeita: tem de ser photoshopada. Sua pele é alterada a ponto de parecer de plástico: ela não tem espinhas nem estrias nem olheiras nem cicatrizes nem hematomas, nenhuma dessas coisas que a gente tem quando vive. Ela sorri, mas não tem linhas ao lado da boca. Faz cara de brava, mas sua testa não se franze. É magérrima (às vezes, anoréxica), mas não tem nenhum osso saltando. É a beleza impossível, mas você deve persegui-la mesmo assim, se quiser ser “feminina”. Porque, sim, feminilidade é isso: é “se cuidar”. Você não pode relaxar. Não pode se abandonar (em inglês, a expressão usada é exatamente esta: “let yourself go”). Usar uma porrada de cosméticos e fazer plásticas é a maneira (a única maneira, segundo os publicitários) de mostrar a si mesma e aos outros que você se ama. “Você se ama? Então corrija-se”. Por mais contraditória que pareça, é esta a mensagem.
Todo dia 8 de março, nos dão uma rosa como sinal de respeito. No entanto, a misoginia está em toda parte. Os anúncios e ensaios de moda glamurizam a violência contra a mulher. Nas propagandas de cerveja e programas humorísticos, as mulheres são bundas ambulantes, meros objetos sexuais. A pornografia mainstream (feita pela Hollywood pornô, uma indústira multibilionária) tem cada vez mais cenas de violência, estupro e simulação de atos sexuais feitos contra a vontade da mulher. Nos videogames, ganha pontos quem atropelar prostitutas.
Todo dia 8 de março, volto para casa e vejo um monte de mulheres com rosas vermelhas na mão, no metrô. É um sinal de cavalheirismo, dizem. Mas, no mesmo metrô, muitas mulheres são encoxadas todos os dias. Tanto que o Rio criou um vagão exclusivo para as mulheres, para que elas fujam de quem as assedia. Pois é, eles não punem os responsáveis. Acham difícil. Preferem isolar as vítimas. Enquanto não combatermos a idéia de que as mulheres que andam sozinhas por aí são “convidativas”, propriedade pública, isso nunca vai deixar de existir. Enquanto acharem que cantar uma mulher na rua é elogio , isso nunca vai deixar de existir. Atualmente, a propaganda da NET mostra um pinguim (?) dizendo “ê lá em casa” para uma enfermeira. Em outro comercial, o russo garoto-propaganda puxa três mulheres para perto de si, para que os telespectadores entendam que o “combo” da NET engloba três serviços. Aparentemente, temos de rir disso. Aparentemente, isso ajuda a vender TV por assinatura. Muito provavelmente, os publicitários criadores desta peça não sabem o que é andar pela rua sem ser interrompida por um completo desconhecido ameaçando “chupá-la todinha”.
Então, dá licença, mas eu dispenso esta rosa. Não preciso dela. Não a aceito. Não me sinto elogiada com ela. Não quero rosas. Eu quero igualdade de salários, mais representação política, mais respeito, menos violência e menos amarras. Eu quero, de fato, ser igual na sociedade. Eu quero, de fato, caminhar em direção a um mundo em que o feminismo não seja mais necessário.
…Enquanto isso não acontecer, meu querido, enfia esta rosa no dignissímo senhor seu cu.
Autoria: Marjorie Rodrigues / Organização: Comunidade Feminismo e Libertação / Saiba mais sobre a campanha.
Marcadores: cronos
Assisti ontem ao especial dos 30 anos de morte de Maysa, na TV Cultura. E fiquei deliciada com a postura da compositora e cantora ao responder para o Abujamra que “tudo é pessoal”, e que o que detestava era “autoridade”. Lembrei de uma frase das feministas nos anos 1970, que dizia que o pessoal é político.
O feminismo (já ouvi várias vezes nos últimos tempos) estaria ultrapassado. Cansei de ouvir mulheres afirmarem que não são "feministas", e sim "femininas". Sempre me surpreendo com esse "descarte" depois de tantas conquistas. Daí com um pouquinho de conversa percebo que é desinformação, mesmo. Essas mulheres vêem as feministas como mulheres “masculinizadas e mal-humoradas”, imagem que viria, inclusive, dos anos 1970.
As propagandas tratam as mulheres como objetos, isso não é novidade, mas me espantou, recentemente, uma propaganda do Seda Shampoo que faz alusão ao feminismo com frases do tipo "a maior luta das mulheres não é contra os homens, mas contra a lei da gravidade" (por favor, avisem aos roteiristas da propaganda que o feminismo não é nem nunca foi uma "luta contra os homens"!).
É claro que quando a gente fala em "lei da gravidade" a primeira coisa que vem à cabeça não são os cabelos, como sugere a propaganda, mas a paródia de Maysa: "meu peito caiu". Pois é, tudo cai: o peito, as orelhas, o nariz, a bochecha, os olhos (sim, a vista cansada, infalível aos 40, vem da flacidez do músculo ocular, e não existem academias que dêem conta de malhar esse tal)... E nos homens também! Só que neles vira charme. Sei. E nas mulheres, não?
Envelhecer é algo delicioso. Gosto dos meus cabelos brancos, gosto de uma serenidade que adquiri depois de anos de muita ansiedade. Gosto de ler nas rugas que se formaram em meu rosto a minha história, o meu riso.
Gosto de lembrar que não "sou" nada, que "estou" em mutação constante, que posso mudar de idéia. Gosto de perder preconceitos, da compreensão que ganhei experienciando a vida. Eu fiz o que pude (e o que não podia), e adorei isso tudo. Continuo me deliciando.
Então quis postar aqui um texto de uma dessas feministas que admiro muito, a Gloria Steinem (foto acima). A Gloria foi (e ainda é) uma grande ativista nos anos 1970 e, vejam, foi coelhinha da Playboy no final dos anos 1950! Leiam, e me digam se falta humor às feministas...
Se os homens menstruassem
Gloria Steinem - 1978
In: Memórias da Transgressão. Tradução de Claudia Costa Guimarães. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.
Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pênis. O poder de dar à luz faz a "inveja do útero" mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.
Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: "Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!"
Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo "superior" será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo "inferior" será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais "fracas". Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, "Que nada, isso é trabalho de mulher." A lógica nada tem a ver com a opressão.
Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?
Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:
Os homens se gabariam da duração e do volume.
Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.
Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidos e muito a respeito das cólicas menstruais.
Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath - "Para aqueles dias de fluxo leve".
As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior número de medalhas olímpicas.
Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação ("men-struação", de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha ("Você precisa dar seu sangue para tirar sangue"), ocupariam os mais altos cargos ("Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?"), ser padres, pastores, o Próprio Deus ("Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados"), ou rabinos ("Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas").
Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais ("O resto não passa de uma questão") ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês ("Você precisa dar seu sangue pela revolução").
O povo da malandragem inventaria novas gírias (“Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez") e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
- Cara, tu tá bonito pacas!
- É cara, tô de chico!
Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é "The Fonz", embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hilt Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais. (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).
Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso "naqueles dias". Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.
As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres ("elas podem desmaiar ao verem sangue").
É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?
A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação.
Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato "desses seres" não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.
E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (“A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses": Phyllis Schlafy. "O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!": Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da "inveja menstrual". As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. ("Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!") As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também menstruariam. ("Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia", explicariam, "é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)
Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.
A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.
Se permitíssemos.
Nunca tive muita afinidade com religiões, apesar de ter sido batizada, comungada e crismada e de ter até acreditado em alguma coisa até o final da adolescência (alguma coisa porque era só no que fazia sentido pra mim). Em casa, a leitura da Bíblia era proibida para menores – minha mãe achava o texto um tanto quanto violento.
Acontece que minha sobrinha, na época com 5 ou 6 anos, ganhou no natal a “Bíblia Ilustrada para Crianças” – e a quem coube ler o texto que tornava as figurinhas um mistério para ela? Claro, a tia que aparece pouco e que devia participar mais do crescimento e da formação das sobrinhas, ou seja, esta que vos fala. Protestei como pude:
Ela gostava era de me ouvir cantar. É uma delícia, a crítica infantil ainda não está formada e o Lobo Mau do Braguinha (da coleção Disquinhos) sempre entrou em qualquer parada de sucesso mirim (tá, eu e Tatiana ainda cantamos isso muito tempo nos bares, mas a gente não cresceu direito, fazer o quê?).
Fui então para as letrinhas em volta das figurinhas de Abraão. E Deus, para “provar” Abraão disse “Toma agora teu filho; o teu único filho, Isaque, a quem amas; vai à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que te hei de mostrar.”
- O que é holocausto?
- Ele queria que o Abraão matasse o filho dele para provar seu amor a Deus.- Por que ele queria isso?
- Na verdade acho que o problema é essa história de “suas”. As pessoas não são de ninguém. Nem de Deus. Daí ELE fica inseguro.
Fui suspensa das leituras pela família. Virei ex-intérprete da Bíblia...
A gente se conheceu em 87 - eu estava tranqüilamente comendo meu bife 007 (frio, duro e com nervos de aço) no bandejão da Unicamp quando uma mulher com dois palitos espetados na cabeça (sim, feito antenas) se aproximou e disse: "você é a Carô? Prazer, sou sua irmã gêmea!".
Ficamos amigas pra sempre – e irmãs gêmeas, bancando todas as apostas que faziam nos bares sobre isso. Com ela eu aprendi a me soltar cantando – na marra, porque eu tinha que segurar as gargalhadas enquanto ela interpretava Yolanda-rezando-o-credo-que-tu-me-ensinaste no fundo do bar. Ou me soltava ou rolava de rir. Quase sempre a segunda opção.