terça-feira, janeiro 23, 2007

Citando Cartola: eu fiz o que pude

(O título é um trecho de Aldir Blanc, em "50 Anos", parceria com Cristóvão Bastos)

Assisti ontem ao especial dos 30 anos de morte de Maysa, na TV Cultura. E fiquei deliciada com a postura da compositora e cantora ao responder para o Abujamra que “tudo é pessoal”, e que o que detestava era “autoridade”. Lembrei de uma frase das feministas nos anos 1970, que dizia que o pessoal é político.

O feminismo (já ouvi várias vezes nos últimos tempos) estaria ultrapassado. Cansei de ouvir mulheres afirmarem que não são "feministas", e sim "femininas". Sempre me surpreendo com esse "descarte" depois de tantas conquistas. Daí com um pouquinho de conversa percebo que é desinformação, mesmo. Essas mulheres vêem as feministas como mulheres “masculinizadas e mal-humoradas”, imagem que viria, inclusive, dos anos 1970.

As propagandas tratam as mulheres como objetos, isso não é novidade, mas me espantou, recentemente, uma propaganda do Seda Shampoo que faz alusão ao feminismo com frases do tipo "a maior luta das mulheres não é contra os homens, mas contra a lei da gravidade" (por favor, avisem aos roteiristas da propaganda que o feminismo não é nem nunca foi uma "luta contra os homens"!).

É claro que quando a gente fala em "lei da gravidade" a primeira coisa que vem à cabeça não são os cabelos, como sugere a propaganda, mas a paródia de Maysa: "meu peito caiu". Pois é, tudo cai: o peito, as orelhas, o nariz, a bochecha, os olhos (sim, a vista cansada, infalível aos 40, vem da flacidez do músculo ocular, e não existem academias que dêem conta de malhar esse tal)... E nos homens também! Só que neles vira charme. Sei. E nas mulheres, não?

Envelhecer é algo delicioso. Gosto dos meus cabelos brancos, gosto de uma serenidade que adquiri depois de anos de muita ansiedade. Gosto de ler nas rugas que se formaram em meu rosto a minha história, o meu riso.

Gosto de lembrar que não "sou" nada, que "estou" em mutação constante, que posso mudar de idéia. Gosto de perder preconceitos, da compreensão que ganhei experienciando a vida. Eu fiz o que pude (e o que não podia), e adorei isso tudo. Continuo me deliciando.

Vejo as fotos mais antigas, como essa que postei no blog, com Tatiana, que tem exatos 20 anos, e é claro que percebo a diferença. Mas lembro bem que não me sentia diferente em relação à minha aparência do que me sinto hoje. É a mesma coisa, nunca me pensei como feia ou bonita, mas sempre gostei do que fui, com todas as crises que me acompanharam durante anos (e as que persistem até hoje). Tá certo, a briga com a balança hoje é maior, os quilos extras custam mais a nos deixar. Mas a ansiedade não. E teve o que vi, que não teria visto nem vivido se não estivesse hoje com 43. Vivi o tempo de Elis Regina, Cazuza, Janis Jobplin. Vi Itamar Assumpção com o Isca de Polícia. Luli & Lucina cantando e compondo juntas, lindas e loucas. Ainda pude viver em um mundo antes da AIDS, de amor livre, de deliciosa anarquia, que persiste em mim. Sim, meus olhos continuam buscando discos voadores no céu.

Então quis postar aqui um texto de uma dessas feministas que admiro muito, a Gloria Steinem (foto acima). A Gloria foi (e ainda é) uma grande ativista nos anos 1970 e, vejam, foi coelhinha da Playboy no final dos anos 1950! Leiam, e me digam se falta humor às feministas...

Se os homens menstruassem
Gloria Steinem - 1978
In: Memórias da Transgressão. Tradução de Claudia Costa Guimarães. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.

Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mun­do passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele bran­ca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.

Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pê­nis. O poder de dar à luz faz a "inveja do útero" mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.

Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ain­da ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: "Vocês deveriam estar orgu­lhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!"

Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de al­guma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo "superior" será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo "inferior" será usado para justificar suas provações. Ho­mens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulhe­res eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais "fracas". Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, "Que nada, isso é tra­balho de mulher." A lógica nada tem a ver com a opressão.

Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?

Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:
Os homens se gabariam da duração e do volume.
Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.

Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os pode­rosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do cora­ção, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegi­dos e muito a respeito das cólicas menstruais.

Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath - "Para aqueles dias de fluxo leve".

As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquis­tam um maior número de medalhas olímpicas.

Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos ci­tariam a menstruação ("men-struação", de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha ("Você precisa dar seu sangue para tirar san­gue"), ocupariam os mais altos cargos ("Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?"), ser padres, pastores, o Próprio Deus ("Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados"), ou rabinos ("Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas").

Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mu­lher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supre­macia dos direitos menstruais ("O resto não passa de uma questão") ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês ("Você precisa dar seu sangue pela revolução").

O povo da malandragem inventaria novas gírias (“Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez") e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
- Cara, tu tá bonito pacas!
- É cara, tô de chico!

Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é "The Fonz", embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hilt Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais. (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de San­gue).

Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso "naqueles dias". Diriam que as lésbicas têm medo de san­gue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.

As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres ("elas podem desmaiar ao verem sangue").

É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disci­plina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da mate­mática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?

A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstrua­ção.

Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato "desses seres" não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.

E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Pode­mos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argu­mentos com um masoquismo valente e sorridente. (“A Emenda de Igual­dade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses": Phyllis Schlafy. "O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!": Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da "inveja mens­trual". As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. ("Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!") As feministas cultu­rais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatu­ra. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalis­mo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens­truariam. ("Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia", explicariam, "é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)

Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tor­nam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.

A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.

Se permitíssemos.

13 Comments:

Blogger Vivien Morgato : said...

G-e-n-i-a-l.

11:20 AM  
Anonymous Anônimo said...

Fiquei passada com a propaganda da Seda quando a vi pela primeira vez.

12:17 AM  
Blogger Vivien Morgato : said...

Carô, escreva pro meu email ( lilithvm@hotmail.com) preciso falar uma coisa com vc e nao achei teu email aqui.bj.

1:02 PM  
Blogger Tatiana said...

Eta mulherada porreta!

9:45 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ei, atualiza, mulher!

6:18 PM  
Anonymous Anônimo said...

Poast excelente!
Dica: parece que já há 'academia ocular"Pelo menos estou tentando. Comprei uns óculos 'casa de abelha"pela internet mesmo. A coisa parece mágica! Fim de ano aviso se já deu efeito.
Vou linkar esse post.

Angela

8:38 PM  
Blogger Ieda said...

oi
cadê você?
sinto falta dos teus textos.
beijo
Ieda

4:04 PM  
Blogger Tatiana said...

cade?
desistiu?

8:45 AM  
Blogger Carô said...

Queridas Tali, Tati e Ieda, dei uma sumidinha, que estou contando ali no post acima - vou tentar me comportar melhor, prometo ;-)!

Angela, que prazer imenso a sua visita! Eu tenho um desses óculos aqui em casa - mas me senti mesmo uma abelha! A tela me cansou um pouco os olhos (acho que é essa idéia de exercício... que ainda vou contar num post!)
Beijos e volto logo!

2:17 AM  
Blogger Clélia Riquino said...

Este comentário foi removido pelo autor.

4:32 PM  
Blogger Clélia Riquino said...

Dúvida: Como a Tati conseguiu passar no teste das letras, aí embaixo?!?! Fui barrada 2 vezes e nem tenho dislexia!
bjo pra's 2,
Clé

4:34 PM  
Blogger Clélia Riquino said...

(...) Pois é, tudo cai: o peito, as orelhas, o nariz, a bochecha, os olhos (sim, a vista cansada, infalível aos 40, vem da flacidez do músculo ocular, e não existem academias que dêem conta de malhar esse tal)... E nos homens também! Só que neles vira charme. Sei. E nas mulheres, não?

Envelhecer é algo delicioso. Gosto dos meus cabelos brancos, gosto de uma serenidade que adquiri depois de anos de muita ansiedade. Gosto de ler nas rugas que se formaram em meu rosto a minha história, o meu riso.

Gosto de lembrar que não "sou" nada, que "estou" em mutação constante, que posso mudar de idéia. Gosto de perder preconceitos, da compreensão que ganhei experienciando a vida. Eu fiz o que pude (e o que não podia), e adorei isso tudo. Continuo me deliciando.


Carô,

Adorei seu texto. Concordo contigo. E, no final da letra, o Aldir diz:

Aos cinqüenta anos
Insisto na juventude


Ei-la, aqui, inteira (linda, na voz de Paulinho da Viola):

50 anos
Aldir Blanc & Cristóvão Bastos


Eu vim aqui prestar contas
De poucos acertos, de erros sem fim
Eu tropecei tanto às tontas
Que acabei chegando no fundo de mim

O filme da vida
Não quer despedida e me indica
Ache a saída
E pede socorro onde a lua
Encanta o alto do morro
E gane que nem cachorro
Correndo atrás do momento que foi vivido
Venha de onde vier
Ninguém lembra porque quer
Eu beijo na boca de hoje as lágrimas de outra mulher

Cinqüenta anos são bodas de sangue
Casei com a inconstância e o prazer
Perdôo a todos, não peço desculpas
Foi isso que eu quis viver
Acolho o futuro
De braços abertos
Citando Cartola:
"Eu fiz o que pude"
Aos cinqüenta anos
Insisto na juventude


Obs.: deletei o comentário anterior, pois tinha cometido alguns erros de digitação. Vamos ver, agora, se passo no teste das letras, pra publicá-lo... (gqp, cá entre nós, é teste de dislexia!)

4:41 PM  
Anonymous Anônimo said...

Então vamos agradecer por não mestruarmos, né?

rsrsrs

11:31 AM  

Postar um comentário

<< Home